Kizomba com saudade

Yara Nakahanda Monteiro

Numa das fotografias do meu álbum de infância celebra-se a festa com a dança de par: Kizomba. A imagem fora registada num salão da casa da minha família, no Huambo, em 1979.

Em primeiro plano, uma mesa coberta com uma toalha branca está elegantemente decorada com diversas pequenas jarras com flores, sobre esta bolos, sobremesas e outras doçarias.

Olhando com atenção, na beira da mesa está um copo de cerveja abandonado. É plausível acreditar ter o copo sido ali deixado, à pressa, por um dos dançarinos retratados na fotografia. Talvez uma Kizomba tenha despertado a sua vontade para dançar e fora procurar par.

No centro da fotografia, um casal de meia idade tem os corpos como que “unidos” pelo umbigo. O homem magro, barbudo, com óculos de massa está com o queixo quase apoiado na testa da mulher, com quem dança. A sua mão esquerda, aberta agarra com firmeza e intimidade o braço da dançarina.  Ela, por seu lado, envolve com o braço a cintura do homem. No rosto feminino, meio encoberto pela camisa aberta e branca do homem, um sorriso ilumina-se. Um abraço, dois corpos. Os meus avós, dançam

Na mesma imagem, um segundo par também dança  mas os seus corpos estão ligeiramente distanciados. A mulher com timidez e reserva enlaça o seu par, não o prendendo verdadeiramente. Largou a mão solta e pendurada nas costas do dançarino. Este, por seu lado, rodeia com um dos braços a jovem mulher sorridente, enquanto o seu outro braço alavanca a mão em concha que acolhe a mão delicada e feminina.  A irmã do minha mãe dança com o meu pai.

Na dança Kizomba, o contexto relacional e situacional determina o nível de proximidade entre os dançarinos e as declinações corporais, todavia não limita com quem se dança.

À esquerda, na fotografia e em segundo plano estão um homem e duas mulheres – uma delas de costas- de pé. Os largos sorrisos  denunciam uma conversa animada.

Junto à porta, um rapaz e uma rapariga, talvez com oito ou nove anos, parecem coscuvilhar o que observam com grande interesse e olhar fixo, num dos cantos da sala.

As vestimentas usadas revelam ser uma festa familiar, informal e descontraída.  Transparece a alegria nos sorrisos e nos olhares dos dançantes e daqueles que se quedam a conversar.  Um momento de felicidade capturado pela câmara fotográfica, na festa de registo do meu nascimento.

A imagem acabada de descrever evoca a significação que atribuo à Kizomba: celebração, alegria, família, memórias e Angola. A música e a dança Kizomba são parte das minhas afetividades.  

No início da década de 80 e migrados em Portugal, os nossos convívios angolanos fruíam de um efeito “aglutinador e vinculante da comunidade” como refere o filósofo Byung- Chul Han, quando reflete sobre a importância de “celebrarmos a festa” no seu livro «Do desaparecimento dos rituais». A festa angolana, principalmente em casas particulares, reforçava o sentido de identidade e pertença dos diaspóricos, a Angola.

Na mesma linha de pensamento de Chul Han, estas confraternizações angolanas onde a música e a dança Kizomba imperavam eram “a vida (passada) a representar-se a si própria”, podendo mesmo ser comparadas ao “tempo sublime” do poeta Hölderlin: o presente para recordar o passado e como ponte entre o que foi e o que será.

Eram rituais festivos de reconstrução da felicidade e grandeza de outrora, dos modos de viver no “seu antigamente”. Modos mais soltos, calorosos, musicais e abastados que a sua realidade na Margem Sul do Tejo.

Nestes convívios importa enfatizar a estética da Kizomba como uma demonstração cultural e simbólica da sua angolanidade, tecnologia de encontro e regresso à terra angolana. Para além de viabilizar a continuidade das rememorações passadas em Angola, é também geradora de novas memórias “angolanas” da diáspora, em território português.

Já adolescente e na década de 90, aprendi a dançar Kizomba com a minha mãe. Tenho ainda presente, a primeira vez que me levou à discoteca africana Crystal, uma pequena casa noturna, com ambiente familiar, na Quinta do Conde frequentada, maioritariamente, por angolanos e propriedade de um português.  

Na Crystal dancei a Kizomba de passadas por toda a pista de dança, aquela onde se “risca o chão” e se coloca “açúcar na passada”. Estas duas  expressões são coloquialmente usadas quando se quer descrever com fervor os movimentos rápidos, largos,  improvisados e performativos da dança Kizomba. Era “a nossa Kizomba do antigamente... dos mais velhos, a do sentimento.”

Músicas grandiosas narram histórias. A Kizomba do sentimento, da emoção era dançada e cantada nos versos de “Saudades de Luanda” do grupo Irmãos Verdade: “Deixei minha gente/ Também minha terra/Trouxe as saudades/ E as recordações/ E para não mais chorar/Contigo vou dançar/Comigo vem sonhar/Ai como é bom” ou ainda O fim de semana já chegou/ a Kizomba com ele começou/ a dançar a alegria está no ar/ porque a boda vai dar que falar/os esquemas começam a surgir (…)/ segurando a dama na passada/ vão três pra frente/ vão três para trás/sempre que roda dá de lado/quando não dá faz marcha atrás” também do mesmo grupo.   

Como não me recordar de “São saudades” de Eduardo Paim:  “Esta keta me recorda o tempo que o tempo levou/ Ali na banda/ Que o tempo levou/ Que o tempo levou/ São saudades Aiue/ São saudades Aiue/ São saudades, saudades, saudades, são saudades e também nas letras de Fernando Santos esqueciam as malambas da vida em Portugal.

Os diaspóricos angolanos encontravam na Crystal e noutras discotecas africanas, em Lisboa, o seu refúgio musical e dançante, através do qual mantinham a sua ligação com Angola. A minha Kizomba herdou o saudosismo da minha mãe pela sua terra.

Os corpos dançantes eram corpos-memória, fazedores de resgates memorialísticos, onde pela dança reforçavam o sentido de identidade e pertença de uma comunidade, muitas vezes, com sentimentos de alienação, em Portugal.

Não me era incomum escutar na discoteca ou em ambientes de festas, os kizombeiros partilharem as suas memórias involuntárias[1] despertadas pelas letras das músicas e, ou pela feitura de um passo de Kizomba improvisado responsável por remeter os dançarinos às suas vivências passadas, na banda.

Como não me recordar de observar nos corpos e nos rostos a revelação dessa nostalgia e melancolia?  Vi lágrimas, olhos fechados viajando de regresso, mãos tocando corações.

As letras das kizombas “acompanhavam” a vida do angolano, no seu país. Exprimam narrativas contra a guerra civil e o sofrimento do povo. Exemplo do mencionado é a letra da música “Esperança Moribunda” do cantor Dom Kikas.

Esta significação política da Kizomba reforçava de certa forma o espírito de resistência mesmo em espaço de confraternização, e por conseguinte o carácter artivista da Kizomba, desse tempo.

Na atualidade, da música Kizomba imperam, as letras românticas cantadas em português e inglês - e não tanto as cantada em kimbundu- estando por vezes, também, despojadas de significado político e social.

Com a reconfiguração da música Kizomba também a dança Kizomba se metamorfoseou. Os movimentos passaram a ser executados com mais lentidão, técnica e padronização. Com a globalização (positiva) da Kizomba, esta tornou-se uma dança de salão profissionalizada, com variantes, dançada por centenas de pessoas, em todo o mundo.

A espontaneidade e improviso da Kizomba de raiz angolana, a aprendida com a minha mãe, onde diferentes gerações dançavam entre si dificilmente se encontra hoje nas pistas europeias ou nas escolas de dança de Kizomba.

A nova Kizomba é jovem, com influência R&B e teve o mérito de se tornar a maior marca angolana e internacionalmente conhecida.

Todavia, a Kizomba raiz, trazida, para a Europa, na bagagem dos angolanos é a Kizomba raiz, com angolonidade. Até pode ser parecida mas não é igual à Kizomba europeia, às novas formas de se kizombar.

Sem negar a importância da incorporação de modificações na Kizomba e na sua profissionalização para que continue a ser a força motora que é, o reconhecimento, preservação e valorização da Kizomba raiz é urgente e importante, enquanto manifestação da cultural nascida nos musseques, de Angola.  

No mesmo livro «Do desaparecimento dos rituais» do filósofo Byung- Chul Han este escreve “quando tudo se transfere para o modo de produção desaparecem os rituais.” A Kizomba é mais que uma dança performativa é um ritual identitário da cultura angolana e de conexão dentro da comunidade.

Não há como eu não terminar este texto sem fazer uso das palavras sábias do cota Eduardo Paim: “Sem Kizomba eu fico de trombas”.


[1] Termo cunhado por Marcel Proust

  • A Minha KIZOMBA

    João Reis

    Não sendo este, um documento com rigor científico, importa referenciar a obra de Pedro David Gomes – “Cultura Popular e Império | Capítulo 14 | Folclore e ritmos modernos na cidade colonial – classe, raça e nação na história da música urbana de Luanda”, da qual nos socorremos, para necessária justificação do trabalho de curadoria solicitado pelo meu amigo Nástio Mosquito a quem, com profundo respeito e admiração, dedico “A minha Kizomba” – a playlist (em actualização permanente). Trata-se de uma preferência pessoal, procurando reduzir as susceptibilidades, tendo como foco exclusivo, o que nos une, A KIZOMBA.

  • How Kizomba Designs the World!

    Kelly Schacht

    A museum is traditionally understood (from a Western perspective) as an institution, whether it be physically or nowadays often virtually, that collects, preserves, researches, interprets, and exhibits objects or artefacts of cultural, artistic, historical, or scientific significance for the benefit of the public. Playing a crucial role in preserving and presenting our collective heritage and knowledge.

    Following this train of thought, a design museum would then acquire, document, and preserve a wide range of design objects, including furniture, industrial products, graphic design, materials, fashion, architecture models, digital interfaces, and more. These objects represent significant examples of design history, innovation, and creativity.

  • Yolanda

    Marissa J. Moorman

    When I moved to Luanda in 1997, Angolans were five years into another period of civil war, living again in an extended state of various vulnerabilities.

    From November that year until my departure in August 1998, I conducted research in the national archives and explored Luanda’s music scene, work that would become a cultural history of Angolan nationalism and the popular music scene of the 1960s and 1970s.

  • Do AfroZouk ao Kizomba: os ritmos do Semba, Coladera, Gumbé, Marambenta e Puita dançam ao passo da nova batida

    Miguel de Barros

    Com a proclamação das independências nos Países Africanos da Língua Oficial Portuguesa – PALOPs ou comummente designados “os cinco“ (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe) – entre 1973-75, a luta pela emancipação e construção contra-colonial ganhou pujança através de novas formas de organização da vida política, económica e social que procuraram, através da dimensão cultural, projetar a construção de novas narrativas e formas de manifestação identitárias capazes de mobilizar coletividades para modelos de vivências baseadas na africanidade enquanto espaço e meio produtor de modernidades.

  • Kizomba

    Quito Ribeiro

    É difícil lembrar quando a gente ouviu uma palavra pela primeira vez. É preciso que tenha sido um evento muito forte para que isso aconteça. A memória edita os acontecimentos - sejam eles linguísticos ou de qualquer outra natureza - quase que à nossa revelia. Ela é prodigiosa em transformar tudo em ficção. Pois então, os eventos devem ter um impacto no nosso corpo e na nossa consciência de tal sorte que indiquem à memória que se trata de algo memorável. Tudo isso devem ser devaneios de um especulador sobre a neurociência. Mas é assim que, no exercício da linguagem, vamos levantando questões e alimentando as curiosidades e contando caso e fofocando.

  • Kizombar el pasado

    Tania Safura Adam

    Los sábados por la mañana teníamos la costumbre de hacer limpieza general en la casa. Amina distribuía las tareas entre mi hermana y yo, de tal manera que nos turnábamos o bien el salón y las habitaciones, o la cocina, los baños y la compra. Los fines de semana del salón eran los mejores porque elegías la música, aun así, nos sentíamos atrapadas en ese lastre doméstico. Éramos niñas y teníamos aprender a llevar la casa. Era nuestra obligación, pero solo nosotras lo cuestionábamos.

    Desde bien temprano, ya sonaban kizombas, sembas, mornas, coladeiras y zouks en la cadena de música hifi Sony del salón. Era una torre de casi metro y medio envuelta en madera con una puerta de cristal y dos altavoces colocados estratégicamente en las esquinas. En la parte superior tenía un plato para los vinilos, luego un sintonizador de radio, un amplificador, un lector de casetes otro de Cd y abajo, guardábamos algunos Lp’s.

  • Una nación llamada Kizomba

    Yuliana Ortiz Ruano

    Como afroecuatoriana, siento que algo se ha perdido. Hay una sensación de extranjería constante, un no saber para dónde mirar, dónde depositar el cuerpo y expandir las extremidades. Aquí entra la dimensión personal, no la general, no puedo hablar por los otros afrodescendientes de este territorio. Voy a decirlo así: a veces no reconozco el lugar de la nacionalidad ecuatoriana como propia, estoy convencida de que eso tiene que ver con mi afrodescendencia.

    Por eso, aprendí portugués a los dieciocho años como regalo de mayoría de edad. Mi madre me dijo: "¿Por qué no terminas inglés?", y no supe qué responder. Había en mí una pulsión impalabrable que me llevó con urgencia a adentrarme en ese idioma.