No axé da Kizomba
por Quito Ribeiro
É difícil lembrar quando a gente ouviu uma palavra pela primeira vez. É preciso que tenha sido um evento muito forte para que isso aconteça. A memória edita os acontecimentos - sejam eles linguísticos ou de qualquer outra natureza - quase que à nossa revelia. Ela é prodigiosa em transformar tudo em ficção. Pois então, os eventos devem ter um impacto no nosso corpo e na nossa consciência de tal sorte que indiquem à memória que se trata de algo memorável. Tudo isso devem ser devaneios de um especulador sobre a neurociência. Mas é assim que, no exercício da linguagem, vamos levantando questões e alimentando as curiosidades e contando caso e fofocando. Se é que o real já não se comporta como ficção independente da memória e da fofoca. Enfim...
Na edição das minhas memórias pessoais sobre a palavra Kizomba - que tenho a tendência a escrever com QU como faço com meu nome - este texto que o leitor ora se depara, registra o momento especial em que paro para pensar sobre o efeito dessa palavra na minha sensibilidade. Então, atirando minha flecha em direção ao passado e às sinapses onde estão minhas memórias, alcanço o momento em que essa palavra saiu do vale de impressões e preconceitos gerais e alcançou o lugar de palavra com P maiúsculo. Foi a Vila Isabel, foi Martinho da Vila quem tirou a palavra do vale. Em 1988, o enredo da escola trazia a palavra Kizomba para o altar elevado onde vivem as palavras e sua poesia. Sinto que antes de tal momento, Kizomba tinha algo de pejorativo. Não consigo pesquisar a origem de tal preconceito, mas, alguma fonte ignorante sobre seu sentido original em quimbundo me fazia atribuir à Kizomba um equivalente de bagunça no sentido ruim que esta palavra tem. A frase está uma kizomba isso aqui estava lá nesse vale onde nossos sentimentos estão armazenados dentro de expressões da língua em que somos falantes nativos. Foi então que a Vila Isabel, ela própria vivendo um momento de recriação e aposta em sua negritude, resolve politizar seu discurso e, liderada pelo casal Ruça que se tornara presidente da escola e Martinho da Vila criador do enredo, se torna pela primeira vez campeã do carnaval carioca com o tema Kizomba - Festa da Raça. Fazendo isso, ela contradiz o que meu sentimento adolescente carregava inconscientemente sobre a Kizomba e planta uma semente de novidade na minha vida. Mas era só uma semente e na época nem percebi que ela tinha sido plantada.
Era 1988, ano em que se completaram 100 anos da abolição e os movimentos negros brasileiros estavam a todo vapor, lançando suas flechas para iluminar o nosso passado às luzes da experiência do povo negro. Eu tinha de 16 para 17 anos e já sofria os efeitos dessa postura das lideranças negras digna de Exu acertando as contas com o passado ou de Oxotocanxoxô, o caçador de uma flecha só. Jovem de classe média influenciado pelo que acontecia nas ruas do carnaval de Salvador onde vivia extasiado acontecimentos como o de Faraó ou de Eu sou negão, e dava meus passos, semiconsciente da relevância que devia dar à questão da minha própria negritude na condução de minha trajetória. Ninguém nasce sabendo e esse aprendizado vindo da coletividade é um presente que o cotidiano nos apresenta e ao qual precisamos estar atentos, dispostos e fortes.
Essa trajetória seguiu ao longo do tempo às vezes no vale, às vezes na planície, entre idas e vindas, avançar e retroceder, quer seja no meu trabalho de compositor, quer fosse nas escolhas que a vida vai oferecendo. A relação entre acaso (visto como algo fortuito) e destino (visto como algo pré-estabelecido) está aqui e acolá para todos atentarem ou consultarem os oráculos. Acaso e destino são os irmãos gêmeos que guiariam nossos passos à revelia da nossa pretensa vontade. Eles brincam com nossa vida e - me atrevo a ser conselheiro dos leitores, pois as palavras desse texto foram me conduzindo a isto - devemos render a eles as devidas homenagens para usufruirmos e participarmos com caminhos abertos dessas brincadeiras. Aláfia.
Nesse andamento, acabei chegando em 2012 a Lisboa para trabalhar como editor num documentário sobre Kuduro. Um amigo genial – desses que nos são agraciados pelos gêmeos - me presenteou com uma playlist que me apresentava à música angolana para me dar perspectiva sobre a empreitada em que me metera meio desavisado, apenas carregado por essa história de escolhas e acaso. Nessa playlist estava lá mais uma vez a kizomba acompanhada pelo Kuduro, pelo Semba, pelo Merengue. Por Paulo Flores e Bonga. Algumas coisas que eu já conhecia, mas que ainda não ligava as pontas que as enredam. A palavra ganhava ali o signo musical, distinguindo um ritmo e uma dança que foram ganhando contornos característicos lá pelos mesmos anos oitenta em que a conheci. Sendo uma palavra quimbundo me pareceu ali estar mais próximo do que seria o sentido mais genuíno e original dela. Kizomba seria aquela forma de participar da festa mais do que a festa em si. Estava me aproximando da palavra e deixando a metáfora de lado. E aqui começo a dar mais uma volta nas histórias, porque esse encontro que pretendo contar já esteve presente em muitas conversas e em pelo menos dois livros. Vai saber o que mais aconteceu com ele... O caso é que nesse mesmo 2012, enquanto editava o documentário sobre Kuduro que tratava da história do ritmo em Angola sem encarar o seu espalhamento pelo mundo, eu convivia com a comunidade angolana em Lisboa que representava esse espalhamento, essa diáspora. E então, numa mesa de bar como deve ser, algo mais forte aconteceu.... A festa da amizade. O congraçamento. A graça do riso e da comemoração a que alcançamos ali eram na verdade, vejo agora enquanto escrevo, meu ritual de iniciação na Kizomba.
A palavra Abiã no candomblé quer dizer adepto e é usada para identificar os frequentadores não iniciados na religião. Pois eu já era um Abiã da kizomba há muito tempo, desde antes até de 1988 e da Vila Isabel. Foram muitas kizombas familiares com a palavra ainda lá no vale. O que meus amigos e amigas angolanos daquela memorável noite ritualística fizeram comigo foi me transformar num Kizombeiro. Ali eu deixei de ser Abian e passei a ser Yaô ou talvez mais certamente um Ogan da Kizomba. Minha cabeça estava feita. A confraternização que vira resistência. Isso era o ensinamento. Essa era a Kizomba. Ter contato com a palavra no seu sentido íntimo onde a resistência não está presente, mas só a confraternização sem as defesas que o racismo e o colonialismo trouxeram. E foi nesse passo em que me reencontrei com a Kizomba quando me chegou o convite para falar dela neste ensaio. Nesse retorno que se dá entre o relembrar e o recriar da memória é que vivemos o recreio da ficção.
A partir daqui já não é mais a flecha, já é o presente de um Kizombeiro instado a dançar ou a festejar. Me vem à cabeça a estrada paralela das duas kizombas e como a kizomba angolana virou a dança aparentada do Zouk enquanto aqui junto com o semba e tantas coisas tão diaspóricas quanto ela, moldou o caráter do povo negro brasileiro. O quanto o diálogo interrompido pelo sequestro se tornou uma conversa de tambores distantes com a célula original, a famosa célula musical tão falada por gênios como Letieres Leite e Naná Vasconcelos. Essa célula foi semeada tanto lá quanto aqui, sendo que lá e aqui são só uma questão de onde nos encontramos agora nessa nossa conversa. Um papo reto. E o lindo traço etimológico da palavra diáspora se revela aí mais forte do que nunca. Ela é tanto o espalhar da ideia de Kizomba quanto o semear dessa semente Kizomba que gerou espécies irmãs dos dois lados do oceano. A resistência e a confraternização são para nós filhas da mesma mãe: a Kizomba. E assim sobrevivemos, e assim semeamos o mundo com nossas muitas e mais ideias, lançando no futuro e retomando do passado saberes que ficaram guardados no DNA dessa semente. Para o infinito e além. No axé da Kizomba.
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A Minha KIZOMBA
Não sendo este, um documento com rigor científico, importa referenciar a obra de Pedro David Gomes – “Cultura Popular e Império | Capítulo 14 | Folclore e ritmos modernos na cidade colonial – classe, raça e nação na história da música urbana de Luanda”, da qual nos socorremos, para necessária justificação do trabalho de curadoria solicitado pelo meu amigo Nástio Mosquito a quem, com profundo respeito e admiração, dedico “A minha Kizomba” – a playlist (em actualização permanente). Trata-se de uma preferência pessoal, procurando reduzir as susceptibilidades, tendo como foco exclusivo, o que nos une, A KIZOMBA.
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How Kizomba Designs the World!
A museum is traditionally understood (from a Western perspective) as an institution, whether it be physically or nowadays often virtually, that collects, preserves, researches, interprets, and exhibits objects or artefacts of cultural, artistic, historical, or scientific significance for the benefit of the public. Playing a crucial role in preserving and presenting our collective heritage and knowledge.
Following this train of thought, a design museum would then acquire, document, and preserve a wide range of design objects, including furniture, industrial products, graphic design, materials, fashion, architecture models, digital interfaces, and more. These objects represent significant examples of design history, innovation, and creativity.
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Yolanda
When I moved to Luanda in 1997, Angolans were five years into another period of civil war, living again in an extended state of various vulnerabilities.
From November that year until my departure in August 1998, I conducted research in the national archives and explored Luanda’s music scene, work that would become a cultural history of Angolan nationalism and the popular music scene of the 1960s and 1970s.
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Do AfroZouk ao Kizomba: os ritmos do Semba, Coladera, Gumbé, Marambenta e Puita dançam ao passo da nova batida
Com a proclamação das independências nos Países Africanos da Língua Oficial Portuguesa – PALOPs ou comummente designados “os cinco“ (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe) – entre 1973-75, a luta pela emancipação e construção contra-colonial ganhou pujança através de novas formas de organização da vida política, económica e social que procuraram, através da dimensão cultural, projetar a construção de novas narrativas e formas de manifestação identitárias capazes de mobilizar coletividades para modelos de vivências baseadas na africanidade enquanto espaço e meio produtor de modernidades.
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Kizombar el pasado
Los sábados por la mañana teníamos la costumbre de hacer limpieza general en la casa. Amina distribuía las tareas entre mi hermana y yo, de tal manera que nos turnábamos o bien el salón y las habitaciones, o la cocina, los baños y la compra. Los fines de semana del salón eran los mejores porque elegías la música, aun así, nos sentíamos atrapadas en ese lastre doméstico. Éramos niñas y teníamos aprender a llevar la casa. Era nuestra obligación, pero solo nosotras lo cuestionábamos.
Desde bien temprano, ya sonaban kizombas, sembas, mornas, coladeiras y zouks en la cadena de música hifi Sony del salón. Era una torre de casi metro y medio envuelta en madera con una puerta de cristal y dos altavoces colocados estratégicamente en las esquinas. En la parte superior tenía un plato para los vinilos, luego un sintonizador de radio, un amplificador, un lector de casetes otro de Cd y abajo, guardábamos algunos Lp’s.
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Kizomba com saudade
Numa das fotografias do meu álbum de infância celebra-se a festa com a dança de par: Kizomba. A imagem fora registada num salão da casa da minha família, no Huambo, em 1979.
Em primeiro plano, uma mesa coberta com uma toalha branca está elegantemente decorada com diversas pequenas jarras com flores, sobre esta bolos, sobremesas e outras doçarias.
Olhando com atenção, na beira da mesa está um copo de cerveja abandonado. É plausível acreditar ter o copo sido ali deixado, à pressa, por um dos dançarinos retratados na fotografia. Talvez uma Kizomba tenha despertado a sua vontade para dançar e fora procurar par.
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Una nación llamada Kizomba
Como afroecuatoriana, siento que algo se ha perdido. Hay una sensación de extranjería constante, un no saber para dónde mirar, dónde depositar el cuerpo y expandir las extremidades. Aquí entra la dimensión personal, no la general, no puedo hablar por los otros afrodescendientes de este territorio. Voy a decirlo así: a veces no reconozco el lugar de la nacionalidad ecuatoriana como propia, estoy convencida de que eso tiene que ver con mi afrodescendencia.
Por eso, aprendí portugués a los dieciocho años como regalo de mayoría de edad. Mi madre me dijo: "¿Por qué no terminas inglés?", y no supe qué responder. Había en mí una pulsión impalabrable que me llevó con urgencia a adentrarme en ese idioma.